quarta-feira, 18 de março de 2009

A sinceridade dos mortos

João há tempos aderiu à ferramenta interna de correios eletrônicos Veritas, já disponível em quase todos os sistemas. Nela os usuários suavizam sua consciência colocando as mensagens importantes que eles não podem compartilhar enquanto vivos em um dispositivo que é somente acionado quando a morte do usuário é presumida.

Presumir a morte de alguém não é difícil para seu provedor de correios eletrônicos, já que automaticamente pode-se perceber sua morte dada uma ausência prolongada no mundo virtual. Esse parâmetro pode ser definido pelo usuário.

Alguns usuários falecidos já tiveram suas memórias resgatadas por entes queridos, colegas de trabalho incompetentes e chefes ranzinzas que receberam comentários às vezes “agressivos”.

Apesar da imediata resistência, essa ferramenta ganhou alcance global rapidamente, e as pessoas passaram a aprimorar constantemente suas mensagens, adicionando comentários, já que tudo pode ser editado antes do usuário partir.

Nesse artigo venho trazer um relato inédito sobre o que aconteceu de trágico e mágico na última sexta-feira 13.

Quando chegou ao escritório João foi logo ver seus correios e normalmente respondeu os que sempre respondera. Mas quando voltou do almoço encontrou sua caixa virtual com milhares de mensagem póstumas e logo começou a lê-las.

A primeira era de sua amiga do carteado, Ana, cuja mensagem dizia:
“-João, provavelmente estou morta enquanto vc lê esta msg, e tenho algumas coisas pra te dizer nessa condição. Aquela vez que vc deu all-in com um fullhouse e eu tinha uma quadra... foi armado, sorry! Vc sempre foi o melhor.”

Mal havia refletido sobre aquela perda e já foi ler a próxima mensagem, de um amigo de infância:
“-Caro amigo, quantas besteiras eu já fiz, e a você devo contar umas das mais cruéis. Lembra daquele seu carro do batman que foi atropelado por um carro de verdade na rua? Na verdade eu havia colocado lá de propósito. Naquela época eu tinha inveja de coisas fúteis, mas depois de ver o seu choro e sua dor acabei me tornando mais seu amigo, e nunca pude te contar pra não sofrer a sua indiferença... Ricardo.”

E assim João seguiu sua tarde inacreditável, com tantas dores a serem sentidas, as de perda, as de iluminação. Quando percebeu que uma de suas colegas, que revelara uma paixonite platônica por ele mesmo, passava na sua frente e ele disse:
“-Mas você tá viva?
-O quê?
-Isso tudo tava soando estranho mesmo... Epidemia nada, desastre nada, isso é alguma falha no servidor!”

Voltou a ler e nem fez algum outro comentário à garota porque ainda estava confuso.

Agora estava mais aliviado porque sabia que nem todos estavam mortos, ou quem sabe nenhum... Quando recebe um telefonema da mãe:
“-Filho! Liga a TV!”
Uma reportagem urgente relatava que diversos fatos começaram a surgir: “um bispo que tem um filho, um apresentador de TV apaixonado pelo patrão, um político corrupto que assume seus crimes, diversos assassinatos resolvidos, milhões de processos de divórcio, exonerações de milhares de funcionários públicos, centenas de suicídios... tudo isso foi causado pela ação de um grupo de hackers auto-intitulados “weep no more baby” que alteraram parâmetros importantes do sistema Veritas...”

João não agüentava mais ouvir, porque finalmente percebeu que suas mensagens também haviam vazado.

Fugiu pra seu abrigo, em sua casa. Trancou-se por três dias. Não atendia ao telefone, nem às batidas na porta, ou aos berros de algum conhecido.

Na terceira manhã abriu as janelas e viu que certo João havia morrido.

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